Nomes apagados e descobertas usurpadas: a história das mulheres na ciência

O preconceito em relação às mulheres na ciência acompanhou gerações, afetando cientistas como Lise Meitner, no século XIX, ou Katalin Karikó, vencedora do Nobel da Medicina de 2023.

Artigo do jornal Público, edição de 28 fevereiro de 2024 da autoria de Filipa Almeida Mendes

“Efeito Matilda”: é esta uma expressão usada para designar o fenómeno de um potencial enviesamento a favor dos académicos do sexo masculino, relegando para segundo plano mulheres que tanto contribuíram para o mundo da ciência. Os exemplos são mais do que muitos – avançamos aqui com sete. Já a esperança, essa é que a história resulte em aprendizagem e que a sociedade aprenda a dar palco e reconhecimento às mentes mais brilhantes, independentemente do género.
Como surgiu um conceito para designar o preconceito na ciência? Essa questão remonta a 1993, ano em que a historiadora da ciência Margaret W. Rossiter criou a expressão “efeito Matilda” em homenagem a Matilda Joslyn Gage, uma sufragista que, cerca de um século antes, publicou um ensaio intitulado Woman as Inventor, no qual enumerou várias mulheres responsáveis por descobertas e progressos científicos cujos nomes tinham sido esquecidos ou usurpados ao longo de vários séculos

Retrato de Matilda Joslyn Gage, em 1871 Universidade de Harvard e Biblioteca Schlesinger sobre a História das Mulheres na América

Mais de 140 anos depois de Matilda Joslyn Gage publicar esse ensaio, em pleno século XXI, várias são as mulheres cientistas ainda ofuscadas pelos homens e cujas contribuições se tornam invisíveis num claro ataque à igualdade de género – embora o número de mulheres na ciência seja agora bastante mais elevado, a percentagem de mulheres em cargos superiores e em lugares de topo (incluindo no que a prémios diz respeito) continua a ser bastante inferior à dos homens. Um preconceito que acompanhou gerações e que afetou cientistas como Lise Meitner, no século XIX, ou Katalin Karikó, cientista que ganhou o Nobel da Medicina de 2023 e que foi uma das pioneiras das vacinas de ARN-mensageiro da covid-19.

Lisa Meitner

Nascida em Viena, na Áustria, a 7 de Novembro de 1878, Lise Meitner, de origem judaica, foi uma investigadora essencial na área da radioactividade e física nuclear, que co-descobriu a fissão nuclear – um processo que consiste na divisão do núcleo de um átomo radioactivo em dois ou mais núcleos menores (o primeiro passo para a criação da bomba atómica).

Otto Hahn e Lise Meitner no Instituto de Química, em Berlim Wikimedia Commons

A física austríaca entrou para a Universidade de Viena em 1901 e, após terminar o doutoramento, em 1907, rumou à Alemanha, tendo ido trabalhar para o Instituto de Química, em Berlim. Foi aí que conheceu Otto Hahn, com quem viria a colaborar ao longo da sua carreira e até mesmo a descobrir o elemento radioativo protactínio.
Segundo o livro Irmãs de Prometeu – A Química no Feminino, da editora Gradiva e escrito por João Paulo André, de início, Lise Meitner foi autorizada a partilhar o espaço laboratorial de Otto, improvisado na cave do instituto. Contudo, “o acesso aos laboratórios dos andares superiores estava-lhe vedado (a ela e a qualquer mulher); para cúmulo, não recebia salário pelo seu trabalho”.
Em 1938, quando a Áustria foi anexada pela Alemanha, Lise Meitner fugiu para a Suécia e continuou o seu trabalho no Instituto Manne Siegbahn, em Estocolmo – aí enfrentou novamente alguns obstáculos, nomeadamente a falta de recursos, devido ao preconceito do físico sueco Karl Manne Georg Siegbahn contra as mulheres na ciência. Embora a centenas de quilómetros de distância, Meitner continuou a colaborar com os colegas com quem tinha trabalhado antes, em Berlim, nomeadamente com Otto Hahn e Fritz Straßmann, no estudo da fissão nuclear, através de correspondência regular com Hahn.
Em Janeiro de 1939, as experiências químicas que estiveram na base do estudo da fissão nuclear, desenvolvidas no laboratório de Hahn em Berlim, foram publicadas e, no mês seguinte, Lise Meitner e o seu sobrinho, Otto Frisch, publicaram, numa carta endereçada à revista Nature, a explicação do processo da fissão nuclear, tendo provado que a divisão do átomo de urânio liberta energia e neutrões que, por sua vez, causam fissão em mais átomos, o que dá origem a uma reacção em cadeia com várias fissões nucleares a libertarem continuamente energia. À data, a física austríaca reconheceu o potencial explosivo da fissão nuclear.
Os resultados da descoberta foram confirmados por cientistas em todo o mundo. Os louros, contudo, foram para Otto Hahn, que, em 1944, recebeu o Prémio Nobel da Química pelo estudo da fissão nuclear e Lise Meitner foi ignorada pelo comité do Nobel. A razão? O seu colega Otto Hahn não terá mencionado o papel de Meitner na investigação desde que a física austríaca tinha fugido da Alemanha (aliás, o químico alemão terá mesmo garantido que as suas experiências químicas tinham estado unicamente na origem da descoberta).

Na primeira fila, da esquerda para a direita: Niels Bohr, Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Otto Stern e Lise Meitner, entre outros físicos, por volta de 1937 FRIEDRICH HUND/ WIKIMEDIA COMMONS

Duas décadas mais tarde, em 1966, a Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos atribuiu o Prémio Enrico Fermi a Otto Hahn, Fritz Straßmann e Lise Meitner pela descoberta da fissão nuclear.
Sabe-se agora que Lise Meitner foi nomeada 48 vezes, ao longo de cerca de quatro décadas, para o Prémio Nobel (dois terços das vezes para o Nobel da Física e um terço para o da Química), mas nunca ganhou.
“Meitnério” (Mt) é o nome do elemento 109 da tabela periódica em homenagem a Lise Meitner, que morreu, aos 89 anos, em Inglaterra e que – apesar de inúmeros convites – sempre recusou colaborar com o Projecto Manhattan, alegando não ter nada a ver com o desenvolvimento de bombas.

Branca Edmée Marques

Cientista, física e química portuguesa, Branca Edmée Marques de Sousa Torres nasceu em Lisboa a 14 de Abril de 1899. Licenciou-se em Ciências Físico-Químicas em 1926, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde iniciou a sua carreira docente em 1925 (como professora assistente), tendo sido durante vários anos a única mulher entre professores e funcionários do Laboratório de Química da Faculdade de Ciências.

Branca Edmée Marques de Sousa Torres nasceu em Lisboa a 14 de Abril de 1899 Wikimedia Commons

Em 1931, foi para França fazer investigação em Física Nuclear no laboratório de Marie Curie no Instituto do Rádio, em Paris, depois de lhe ter sido concedida uma bolsa da Junta da Educação Nacional. Foi orientada nos primeiros três anos pela própria Marie Curie (até à morte de Curie em 1934), a famosa investigadora francesa de origem polaca que ficou na história pelas suas descobertas na área da física e da química, duas vezes galardoada com o Prémio Nobel e que se viu também obrigada a ultrapassar vários obstáculos durante a sua carreira, por ser mulher.
Em 1935, Branca Edmée Marques obteve o doutoramento, com classificação máxima, na Universidade Sorbonne, em Paris. No ano seguinte, a cientista portuguesa viu-lhe ser reconhecida uma equiparação ao grau de doutor em Ciências Físico-químicas em Portugal e fundou o Laboratório de Radioquímica, o primeiro laboratório de investigação em química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (que ficou depois conhecido como Centro de Estudos de Radioquímica da Comissão de Estudos de Energia Nuclear).
Foi professora universitária durante várias décadas, mas só em 1966 – mais de 30 anos depois de ter regressado de França para trabalhar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa – assumiu a posição de professora catedrática, tendo sido a primeira mulher a tornar-se professora catedrática de química em Portugal.
Num artigo intitulado Mme Curie e Mme Marques: o encontro de duas pioneiras e divulgado pela Sociedade Portuguesa de Física, Maria Conceição Ruivo conta que Branca Edmée Marques foi pedida em casamento por um colega da faculdade, o naturalista António da Silva de Sousa Torres, tendo aceitado a proposta com uma condição: que o homem nunca colocasse qualquer impedimento à sua carreira profissional e, inclusive, não se opusesse à sua ida para Paris – o marido deu-lhe autorização para ir acompanhada pela sua mãe (na altura, as mulheres precisavam de autorização dos maridos para viajarem para o estrangeiro).

Branca Edmée Marques e duas colaboradoras num laboratório da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa DR

Branca Edmée Marques morreu em Lisboa a 19 de Julho de 1986, aos 87 anos. No final da sua vida, recordou, em entrevista, sentir-se realizada e plena com a sua carreira enquanto professora e investigadora numa época em que “ser mulher era pior do que ser um bicho feroz”.
Em Setembro de 2009, a Câmara Municipal de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua na Cidade Universitária em homenagem à cientista cujos trabalhos se centraram no estudo do polónio e nas aplicações terapêuticas dos radioisótopos

Rosalind Franklin

ADN: não será esta uma expressão desconhecida para o leitor e a verdade é que foram os contributos de uma mulher que ajudaram a compreender as suas estruturas moleculares. Falamos de Rosalind Elsie Franklin, uma química britânica nascida em Londres, a 25 de Julho de 1920, cujo trabalho também incidiu sobre o carvão mineral, a grafite, o ARN e vírus.

Rosalind Elsie Franklin nasceu em Londres, a 25 de Julho de 1920 Laboratório de Biologia Molecular do Conselho de Investigação Médica britânico

Licenciou-se em Ciências Naturais no Newnham College, uma faculdade para mulheres da Universidade de Cambridge, em 1941. No âmbito de uma bolsa de estudos, começou a trabalhar no laboratório de físico-química da Universidade de Cambridge e, em 1942, a British Coal Utilisation Research Association contratou-a como investigadora assistente e foi aí que Rosalind Franklin começou a estudar a porosidade do carvão, trabalho que lhe permitiu concluir o doutoramento em 1945 e que foi utilizado para produzir máscaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial. Dois anos mais tarde, a química britânica foi para Paris, onde se dedicou a estudar a difracção dos raios X – um método que determina a disposição dos átomos em sólidos e cristais –, tendo-se tornado posteriormente investigadora associada no laboratório de biofísica do King’s College, em Londres e, depois (devido a um desacordo com o director e um colega), no Birkbeck College.
O trabalho de Franklin com imagens da difracção dos raios X para determinar a estrutura da molécula do ADN – nomeadamente a célebre “fotografia 51”, a primeira a registar nitidamente a estrutura do ADN –, enquanto trabalhava no King’s College, em Londres, permitiu descobrir a forma em dupla hélice do ADN, descoberta pela qual James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins (este último colega de Franklin no King’s College) ganharam o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1962. Já Rosalind Franklin nunca foi premiada pelas suas descobertas e, aliás, morreu (em 1958, aos 37 anos, com cancro nos ovários) sem saber que o seu trabalho foi essencial para comprovar a teoria da dupla hélice – só em 1968, numa autobiografia intitulada A Dupla Hélice: Um Relato Pessoal da Descoberta da Estrutura do ADN (editado em Portugal pela Gradiva) é que James Watson revelou a importância do trabalho de Franklin para o desenvolvimento do modelo a três dimensões da estrutura do ADN.

A célebre “fotografia 51”, a primeira a registar nitidamente a estrutura do ADN Raymond Gosling/King’s College London

“O verdadeiro problema era, portanto, Rosy [Rosalind Franklin]. Não podia evitar o pensamento de que o melhor lugar para uma feminista era no laboratório de outras pessoas”; “Ela não era tão tonta que esquecesse a vantagem de uma rígida educação de Cambridge”; “Despedi-la imediatamente com base na agressividade do seu sorriso era completamente impossível”: são estas algumas passagens do livro de James Watson acima mencionado.
No epílogo, uma tentativa de se redimir: “Em 1958, Rosalind Franklin morreu prematuramente aos 37 anos. Atendendo a que as minhas primeiras impressões dela, tanto científicas como pessoais (registadas nas pá\ginas iniciais deste livro) foram muitas vezes erradas, quero dizer algo sobre as suas realizações. O trabalho de raios X que ela faz no King’s [College] é cada vez mais encarado como soberbo. (…) Nessa altura já estavam esquecidas todas as nossas fricções iniciais e ambos começámos a apreciar grandemente a sua honestidade pessoal e generosidade, percebendo com anos de atraso as lutas que uma mulher inteligente tem de enfrentar para ser aceite num mundo científico que encara as mulheres frequentemente como meras diversões de pensamentos sérios.”
A química britânica liderou ainda um trabalho pioneiro no Birkbeck College sobre as estruturas moleculares dos vírus – o qual valeu depois a Aaron Klug, membro da sua equipa que continuou o trabalho, o Prémio Nobel da Química em 1982 –, tendo estudado o vírus do mosaico do tabaco e o vírus da poliomielite.

Susan Jocelyn Bell Burnell

Susan Jocelyn Bell Burnell nasceu em Belfast, na Irlanda do Norte, a 15 de Julho de 1943. Desde os 12 anos que teve de lutar (juntamente com os seus pais) para ter aulas de Ciências. “O pressuposto era que os rapazes se dedicavam à ciência e as raparigas à culinária e aos trabalhos de costura. Era um pressuposto tão firme que nem sequer era discutido, não havia escolha”, recorda, citada pelo The Washington Post.

Jocelyn Bell Burnell junto ao radiotelescópio no Observatório de Radioastronomia Mullard da Universidade de Cambridge, em 1968 Daily Herald Archive/National Science & Media Museum

Mas Jocelyn Bell Burnell não se deixaria vencer – leu os livros de astronomia do pai de uma ponta à outra e, após insistência por parte dos seus progenitores, a escola onde andava acabou por permitir que Jocelyn Bell Burnell frequentasse as aulas de laboratório juntamente com outras duas raparigas.
Em 1965, Burnell licenciou-se, com distinção, em Física na Universidade de Glasgow – embora fosse uma das poucas mulheres no Departamento de Física e ouvisse comentários provocadores por parte dos seus colegas homens sempre que entrava numa aula de Ciências.
A astrofísica integrou depois um programa de pós-graduação na Universidade de Cambridge, onde trabalhou na criação de um radiotelescópio para estudar quasares (núcleos muito brilhantes de galáxias longínquas) com o astrofísico Antony Hewish. A tarefa de Burnell consistia em analisar os intermináveis registos das transmissões de rádio que chegavam do espaço.
Em 1967, Jocelyn Bell Burnell, com 24 anos, descobriu alguns sinais desconhecidos captados pelo radiotelescópio: impulsos muito curtos que se repetiam em intervalos regulares. Intrigada, consultou Hewish e, nos meses que se seguiram, ambos tentaram eliminar possíveis fontes emissoras desses impulsos que apelidaram de “Little Green Men” (“Pequenos Homens Verdes”, numa tradução livre), em referência à possibilidade remota de se tratar de tentativas de comunicação por parte de extraterrestres.

Registo dos impulsos descobertos, em 1967, por Jocelyn Bell Burnell Billthom/Wikimedia Commons


Na verdade, Jocelyn Bell Burnell tinha acabado de descobrir os primeiros pulsares (estrelas de neutrões que giram sobre si próprias e emitem feixes de radiação electromagnética) e, em 1968, publicou os resultados na revista Nature juntamente com os seus orientadores Anthony Hewish e Martin Ryle.
A publicação do artigo gerou grande interesse por parte da imprensa. Segundo o jornal The Washington Post, nas entrevistas, os jornalistas pediam a Hewish que explicasse o significado científico da descoberta e a Bell Burnell perguntavam qual o tamanho do seu busto e quantos namorados tinha tido – um fotógrafo ter-lhe-á mesmo pedido que desabotoasse um botão da sua blusa.
O reconhecimento da descoberta foi apenas para os homens (Hewish e Ryle), que receberam o Prémio Nobel da Física em 1974 – até hoje, Burnell mostrou-se pouco incomodada com o facto de ter sido o seu mentor a ganhar o prémio, considerando ser injusta a atribuição de um Prémio Nobel a uma simples estudante.
A astrofísica concluiu o seu doutoramento em radioastronomia em 1969 pela Universidade de Cambridge, tendo depois trabalhado em várias instituições – como a Universidade de Southampton, a University College London, o Real Observatório, em Edimburgo, a Universidade Aberta, a Universidade de Princeton (EUA) e a Universidade de Bath (Inglaterra).
Entre 2002 e 2004, Jocelyn Bell Burnell foi presidente da Real Sociedade Astronómica e, anos mais tarde, do Instituto de Física – foi, aliás, a primeira mulher a presidir o Instituto de Física. Em 2018, aos 75 anos, altura em que leccionava Astrofísica na Universidade de Oxford, recebeu o Prémio de Física Fundamental pela sua contribuição para a descoberta dos pulsares e pela sua carreira e, com o valor do prémio (três milhões de dólares), criou bolsas de estudo destinadas a ajudar mulheres de minorias étnicas e estudantes refugiadas a alcançarem o mundo da física e da astrofísica.

Susan Jocelyn Bell Burnell, em 1967 Roger W Haworth/Flickr/Wikimedia Commons

Svetlana Mojsov

A idade de Svetlana Mojsov é um segredo bem guardado: sabe-se apenas que terá nascido entre os finais da década de 1940 e inícios da década de 1950, na Jugoslávia. Licenciou-se em Química em Belgrado, tendo entrado para o programa de pós-graduação da Universidade Rockefeller em 1972, onde trabalhou no laboratório do bioquímico americano Robert Bruce Merrifield – laureado com o Prémio Nobel da Química em 1984 – na síntese de péptidos (ou seja, na produção de péptidos, compostos orgânicos nos quais vários aminoácidos se ligam entre si).
Nos anos 1980, Svetlana Mojsov mudou-se para os Estados Unidos para trabalhar no Hospital Geral de Massachusetts, onde passou a dirigir um laboratório e a trabalhar na identificação do péptido-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), uma hormona produzida no intestino que desencadeia a libertação de insulina no pâncreas – área em que Joel Habener, seu colega no hospital, também trabalhava
Na década de 1990, Svetlana Mojsov regressou a Nova Iorque, tendo voltado a trabalhar na Universidade Rockefeller – onde é actualmente professora – e, em 1992, a equipa do Hospital Geral de Massachusetts testou o GLP-1 em seres humanos. Os medicamentos que mimetizam a acção do GLP-1 foram, entretanto, desenvolvidos para tratar a obesidade e a diabetes por empresas como a Novo Nordisk e a Eli Lilly, tendo sido patenteados com Habener como único criador.
Svetlana Mojsov não se deixou ficar e lutou para que o seu nome fosse incluído nas patentes, algo com que o Hospital Geral do Massachusetts acabou por concordar (com o nome de Mojsov a ser incluído em quatro patentes e, posteriormente, numa quinta patente concedida aos dois cientistas).
Um artigo publicado pela Science, em Setembro de 2023, descreve como a química sérvia se sentiu quando, na Primavera de 2021, foram anunciados os vencedores do Prémio Internacional da Fundação Gairdner, um prestigiado prémio em investigação biomédica: “Fiquei muito aborrecida”, conta Svetlana Mojsov, recordando a altura em que três cientistas homens foram laureados com o prémio pelo trabalho que esteve na base do desenvolvimento dos medicamentos contra a diabetes e a obesidade (pertencentes à classe dos agonistas dos receptores GLP-1 como, por exemplo, o Ozempic), cuja popularidade explodiu nos últimos anos. Esta foi a terceira vez em quatro anos que o mesmo trio de cientistas – Joel Habener, do Hospital Geral do Massachusetts, Daniel Drucker, da Universidade de Toronto, e Jens Juul Holst, da Universidade de Copenhaga – foram distinguidos pela investigação iniciada em 1970/1980 sobre os péptidos semelhantes ao glucagon.

Svetlana Mojsov trabalhou na identificação do péptido-1 semelhante ao glucagon (GLP-1) Universidade Rockefeller

Apesar de o reconhecimento ter chegado (tarde) e de a química sérvia ter protestado contra a omissão do seu nome em artigos publicados por vários jornais e revistas, a carreira da investigadora seguiu um rumo diferente da dos três homens – Mojsov nunca viria a gerir o seu próprio laboratório nem a ter financiamento público ou até mesmo a publicar artigos científicos com tanta frequência como os seus colegas, de acordo com o artigo da Science. “Ainda não percebo como é que fui excluída”, afirma Mojsov na peça de 2023, à data com 70 e poucos anos.
Habener, Drucker e Holst confirmam as contribuições de Mojsov para a descoberta. Em entrevista ao PÚBLICO, Daniel Drucker garante que, no laboratório em Boston, Joel Habener orientou todo o projecto “e havia uma bioquímica chamada Svetlana Mojsov, que forneceu conhecimentos sobre a síntese de péptidos e a sua medição”. “Ao mesmo tempo, havia colegas na Dinamarca, nomeadamente o professor Jens Juul Holst, que também estava a fazer experiências muito semelhantes ao estudar a acção das hormonas intestinais no GLP-1. Portanto, este foi certamente um esforço de colaboração de muitas pessoas diferentes”, diz.
À Science, Mojsov lamenta que os seus colegas homens admitam que a química merece “mais reconhecimento” mas depois se apropriem desse reconhecimento que, diz, lhe “pertence” e o atribuam “a si próprios”. Há até quem apelide Mojsov de “a Rosalind Franklin do Ozempic” devido ao tratamento semelhante (e sexismo) de que ambas foram alvo.

Katalin Karikó

A história de Katalin Karikó é uma história de esperança e perseverança. Nascida em Szolnok, na Hungria, a 17 de Janeiro de 1955, doutorou-se em Bioquímica e realizou várias investigações de pós-doutoramento em diferentes instituições na Hungria e nos Estados Unidos, tendo-se mudado com o marido e a filha para território norte-americano em 1985 – foi aí que prosseguiu os trabalhos que vinha a desenvolver sobre o ARNm na Universidade Temple, em Filadélfia.
Em 1989, Karikó saiu da Universidade Temple devido a problemas com o seu chefe – segundo o The Guardian, o seu chefe, Robert Suhadolnik, tentou que a cientista fosse deportada por ter procurado um lugar noutra universidade – e mudou-se para a Universidade da Pensilvânia (EUA) para continuar a sua investigação. No ano seguinte, foi despromovida por insistir em trabalhar no ARN-mensageiro (ARNm) numa altura em que nem conseguia bolsas de investigação e ganhava menos do que um técnico de laboratório, segundo contou à revista Wired. A bioquímica não desistiu e, em 1997, o imunologista Drew Weissman integrou a equipa da Universidade da Pensilvânia – pouco tempo depois, Karikó e Weissman conheceram-se enquanto esperavam na fila para as fotocopiadoras e a conversa despertou o interesse do imunologista pelo trabalho com o ARNm que a cientista húngara vinha a desenvolver.

Katalin Karikó nasceu em Szolnok, na Hungria, a 17 de Janeiro de 1955 BioNtech

A colaboração entre os dois resultou num artigo científico publicado em 2005 que veio resolver um problema há muito estudado. Isto porque, por volta de 1961, altura em que foi descoberto o ARN-mensageiro – uma molécula que copia as instruções do código de ADN, que estão no interior do núcleo das células, para outras estruturas celulares, os ribossomas, onde são produzidas proteínas –, foram criadas formas sintéticas de ARNm que os cientistas pretendiam usar para pôr as células a produzir substâncias terapêuticas. Porém, a sua aplicação foi travada porque, quando o ARNm era injectado no organismo, o sistema imunitário considerava-o uma invasão e destruía-o com a resposta inflamatória.
Ora, nos anos 2000, Karikó e Weissman descobriram uma solução: a criação de uma molécula de ARNm artificial que poderia ser administrada de forma segura, evitando a rejeição. “Percebemos na altura que isto era muito importante e que podia ser usado para vacinas e terapias. Portanto, escrevemos um artigo, pedimos uma patente, criámos uma empresa e descobrimos que não havia interesse nenhum nisto. Ninguém nos convidou para ir falar disto a lado nenhum”, recordou Katalin Karikó à Wired. Perante o desinteresse na altura, a Universidade da Pensilvânia vendeu a patente pedida por Karikó e Weissman.
Até que, 15 anos mais tarde, a tecnologia do ARNm foi finalmente usada para ajudar a salvar milhões de vidas durante a pandemia de covid-19, tendo sido a base das vacinas desenvolvidas pelas empresas de biotecnologia BioNtech/Pfizer e pela Moderna.
O reconhecimento chegou em 2023, ano em que Karikó e Weissman venceram o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina pelas suas descobertas “que permitiram o desenvolvimento de vacinas ARNm eficazes contra a covid-19”, depois de a cientista húngara ter insistido durante décadas no potencial da tecnologia do ARNm, mesmo que isso tenha significado a sua humilhação profissional durante anos. Durante o anúncio do Prémio Nobel, o painel recordou o árduo caminho que Karikó trilhou, destacando que a cientista nunca teve um lugar permanente (tenure) na Universidade da Pensilvânia e que nunca recebeu financiamento dos Institutos Nacionais da Saúde dos EUA.
Numa entrevista por telefone após a atribuição do prémio, Karikó recordou o seu percurso desde que começou a estudar na Hungria e alguns dos contratempos que enfrentou, incluindo a ridicularização que sofreu por parte dos colegas pela sua obstinação e o facto de, há mais de dez anos, ter sido afastada da sua investigação pela Universidade da Pensilvânia e despromovida e, mais tarde, de se ter mudado para a Alemanha, longe da sua família, durante vários anos, quando entrou, em 2013, para a BioNTech (como vice-presidente da empresa farmacêutica) – nem aí a provação parou, segundo a investigadora, com os colegas a criticarem o facto de a empresa, na altura, não ter sequer um website.
Mas a sua perseverança deu frutos. “Temos de nos concentrar nas coisas que podemos mudar”, disse, numa entrevista publicada no site do Prémio Nobel. Actualmente com 69 anos, Katalin Karikó é professora na Universidade de Szeged (Hungria) e professora adjunta na Faculdade Perelman de Medicina da Universidade da Pensilvânia.

Donna Strickland
Nascida em Guelph, uma cidade no Canadá, a 27 de Maio de 1959, Donna Strickland iniciou os seus estudos em Engenharia Física na Universidade McMaster, em 1977, sendo uma das únicas três mulheres numa turma de 25 pessoas. Licenciou-se em 1981 e iniciou a sua pós-graduação em Física no Instituto de Óptica. Oito anos mais tarde, obteve o seu doutoramento em Física na Universidade de Rochester, nos EUA, orientada pelo físico francês Gérard Mourou.Nos anos que se seguiram, a física canadiana passou por várias instituições, especializando-se no campo da física dos lasers (nomeadamente pela Universidade de Princeton) e, em 1997, tornou-se professora assistente na Universidade de Waterloo, onde continua actualmente como professora e investigadora, liderando uma equipa que estuda o laser ultra-rápido e de alta intensidade.

Donna Strickland iniciou os seus estudos em Engenharia Física, em 1977 Universidade de Rochester

Importa salientar que, depois de obter o seu doutoramento em 1989, foram precisos oito anos para Strickland encontrar um lugar a tempo inteiro na academia – um facto que atribui, em parte, às dificuldades que os académicos casados, em especial as mulheres, enfrentam (sendo a carreira da mulher suspensa em prol da do marido).
Em 2018, Donna Strickland ganhou o Prémio Nobel da Física, juntamente com Gérard Mourou e o norte-americano Arthur Ashkin, pelas suas “invenções revolucionárias no campo da física dos lasers”, desenvolvidas nos anos 1980.
Segundo o site do Prémio Nobel, “em 1985, Gérard Mourou e Donna Strickland conseguiram criar impulsos de laser ultracurtos de alta intensidade sem destruir o material de amplificação” – foi nesse ano que publicaram o artigo científico considerado revolucionário e que foi o cerne da tese de doutoramento de Strickland (aliás, foi o primeiro artigo científico que a investigadora publicou na vida e que, após 33 anos, lhe valeu o Nobel). Numa publicação no site da Universidade de Waterloo, destaca-se que os dois investigadores “abriram caminho para os impulsos de laser mais intensos alguma vez criados”, uma investigação que “tem actualmente várias aplicações na indústria e na medicina – incluindo o corte da córnea de um paciente numa cirurgia oftalmológica a laser e a maquinação de pequenas peças de vidro para utilização em telemóveis”.
A atribuição do Nobel a Donna Strickland, em 2018, foi a primeira vez em 55 anos que uma mulher fez parte dos laureados do Nobel da Física – um galardão criado em 1901. Além disso, à data, era apenas a terceira mulher desde sempre a receber o prémio (desde então, mais duas outras cientistas receberam o Nobel da Física, totalizando cinco mulheres laureadas com o prémio que já foi concedido a 225 pessoas).
Nem a própria Donna Strickland tinha noção de que tinham sido tão poucas mulheres a receber este prémio, como disse na conferência de imprensa, ao telefone, após o anúncio do Nobel: “Pensei que houvesse mais…”

Donna Strickland ganhou o Prémio Nobel da Física de 2018 Peter Power/REUTERS

Apesar dos importantes avanços científicos de Strickland, houve até quem pensasse que ela não era suficientemente importante para ter uma simples página na Wikipédia, uma história que a revista The Atlantic considerou como uma metáfora do esquecimento a que o Nobel da Física tem submetido as mulheres. Em Maio de 2018, alguém tentou criar-lhe uma página na Wikipédia, mas um moderador desta enciclopédia considerou que as referências de submissão não mostravam que Donna Strickland se qualificava para ter uma página. Só no dia do anúncio do Nobel é que começou a ser construída uma página sobre a cientista canadiana.
Para Donna Strickland, a conclusão é uma: “Precisamos de celebrar as mulheres na física porque elas estão por aí… Sinto-me honrada por ser uma dessas mulheres.”